Introdução
Em 2024, a fiscalização tributária em São Paulo ganhou destaque com a chamada Operação Loki, da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado. O objetivo é investigar possíveis doações disfarçadas de compra e venda de participações societárias — especialmente quando os valores envolvidos são considerados “módicos”.
O tema, porém, levanta um debate importante: até onde o Fisco pode ir ao realizar o lançamento de ofício do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação)?
O que é o Lançamento de Ofício?
De acordo com o artigo 149 do Código Tributário Nacional (CTN), o lançamento de ofício acontece quando o próprio Fisco identifica uma situação que demanda cobrança de tributo, sem depender de declaração do contribuinte.
Isso é válido, por exemplo, quando há dolo, fraude ou simulação. Mas surge a dúvida: o Fisco pode presumir simulação apenas porque a compra e venda foi feita por um valor baixo?
Na minha opinião (e também de muitos outros profissionais), não. O lançamento de ofício só é legítimo quando o fato gerador do tributo está claro e incontestável. Caso contrário, a cobrança seria arbitrária e poderia configurar até confisco.
O Conceito de “Tributo Consentido”
No Brasil, só existe tributo se houver consentimento do povo, expresso em lei aprovada por seus representantes. Isso significa que:
- Nenhum tributo pode ser criado ou aumentado sem lei.
- A cobrança deve seguir atividade administrativa plenamente vinculada, ou seja, sem espaço para “invenções” do agente público.
Esse ponto é essencial: a Constituição protege o contribuinte contra interpretações ampliadas ou subjetivas do Fisco.
A Sequência da Obrigação Tributária
O CTN estabelece uma ordem lógica:
- O fato gerador ocorre.
- Surge a obrigação tributária.
- Constitui-se o crédito tributário pelo lançamento.
- O contribuinte paga o tributo.
Se não há fato gerador inequívoco, não pode haver lançamento. Por exemplo:
- Se alguém vende uma quota de empresa e recebe efetivamente o valor, trata-se de compra e venda.
- Só haveria doação (e ITCMD devido) se a transferência fosse gratuita, sem contraprestação.
O Papel do Art. 116, Parágrafo Único do CTN
O CTN prevê que a autoridade pode desconsiderar negócios jurídicos feitos para dissimular o fato gerador. Mas isso deve ocorrer apenas com um procedimento específico, previsto em lei ordinária — o que ainda não existe.
Ou seja, o Fisco não pode usar o lançamento de ofício como atalho para desconsiderar contratos e presumir doações. Isso depende de um procedimento próprio que nunca foi regulamentado, apesar de tentativas frustradas no Congresso (MP 66/2002 e MP 685/2015).
A Operação Loki
Segundo informações oficiais, a operação busca identificar doações travestidas de compra e venda de quotas.
O Fisco analisa indícios como:
- parentesco entre vendedor e comprador;
- ausência de declaração de ITCMD;
- falta de capacidade financeira do comprador;
- pagamento simbólico (valor “módico”).
As situações levantadas incluem:
- Doação declarada sem pagamento do imposto;
- Compra e venda sem pagamento;
- Compra e venda por valor módico;
- Compra e venda com pagamento, mas sem origem comprovada do dinheiro;
- Compra e venda regular (sem questionamentos).
A controvérsia está principalmente na situação 3, em que o Fisco considera que uma venda barata seria, na verdade, uma doação disfarçada.
O Risco de Criminalização
O vídeo oficial da Operação Loki sugere que o contribuinte poderia ser enquadrado em crime contra a ordem tributária (art. 2º da Lei 8.137/1990).
Mas isso não se sustenta. Não há dolo comprovado do contribuinte, e planejamento tributário é lícito no Brasil. O risco é transformar uma questão interpretativa em ameaça penal, o que gera insegurança jurídica.
Doutrina e Jurisprudência
Doutrinadores como Flávio Tartuce e Roque Carraza defendem que:
- O negócio simulado é nulo, mas só o Judiciário pode declarar essa nulidade.
- O Fisco não pode simplesmente converter compra e venda em doação sem lei específica que regulamente o procedimento.
Na jurisprudência, existem decisões do TJSP favoráveis ao Fisco em alguns casos, mas a maioria dos precedentes recentes reforça o direito do contribuinte. Em várias situações, o tribunal anulou cobranças de ITCMD porque não ficou comprovada a ocorrência de doação.
Existe Lei Específica em São Paulo?
Não. Apesar de argumentos de que o ITCMD seguiria as regras do ICMS, na prática não há norma estadual que regulamente o procedimento previsto no art. 116, parágrafo único, do CTN.
Além disso, pelo princípio da competência tributária, essa regulamentação deveria ser feita por lei federal complementar, não por lei estadual.
Conclusão
A Operação Loki levantou um debate relevante: o equilíbrio entre a necessidade de combater abusos e a proteção das garantias constitucionais do contribuinte.
O ponto central é que o lançamento de ofício não pode substituir o procedimento específico previsto em lei, que ainda não existe. Enquanto isso, aplicar ITCMD em operações de compra e venda de quotas apenas por considerar o preço baixo pode gerar insegurança jurídica e risco de confisco.
O recado final é claro: o combate à fraude deve respeitar os limites da lei, sob pena de transformar um sistema tributário democrático em arbitrário.