O Alarde Inicial: A Decisão do STJ e a Reação do Mercado
Tudo começou com uma manchete impactante no jornal Valor Econômico: “STJ determina cálculo do ITBI sobre o valor de mercado do imóvel”. A notícia causou apreensão imediata entre profissionais que atuam com planejamento patrimonial e constituição de holdings familiares. Afinal, uma decisão que estabelece a incidência do ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis) com base no valor de mercado poderia representar custos adicionais expressivos para operações de integralização de capital com bens imóveis.
Contudo, ao aprofundar a leitura da decisão, percebeu-se que o conteúdo era, na verdade, favorável ao contribuinte. Ainda assim, muitos continuaram achando que aquilo pouco teria a ver com a prática de constituição de holdings — um erro conceitual, como veremos adiante
O Papel da Célula Cofre na Holding Familiar
Quem já está inserido no universo da estruturação de holdings sabe: o primeiro passo na constituição de uma holding familiar é a criação da chamada “célula cofre” — uma empresa (CNPJ) que funcionará como o repositório do patrimônio da família.
No início, essa empresa é criada “nua”, ou seja, sem qualquer bem. A etapa seguinte é a transferência dos bens da pessoa física para a pessoa jurídica. E é aqui que começam as dúvidas jurídicas e tributárias: qual a natureza jurídica dessa transferência? Como essa operação será enquadrada legalmente
Qual Modelo de Transferência Utilizar?
A resposta é construída por eliminação:
- Empréstimo? Não serve, pois não há transferência de propriedade.
- Doação? É possível, mas há incidência de ITCMD (Imposto sobre Doações).
- Compra e venda? Também é possível, mas implicaria na incidência de ITBI sobre imóveis.
O foco, especialmente, está nos bens imóveis, por conta da sua complexidade tributária. Enquanto a transferência de bens móveis por ato oneroso entre vivos não tem relevância tributária, os imóveis, ao serem transferidos por esse tipo de ato, geram a incidência do ITBI, conforme o artigo 156, inciso II da Constituição Federal.
Mas a questão que se impõe é: a integralização de capital com bens imóveis é um ato oneroso?
A Comutatividade de Obrigações: O Que Torna a Integralização um Ato Oneroso
À primeira vista, pode parecer que a transferência do bem à empresa é um ato gratuito, pois o sócio não recebe dinheiro algum em troca. No entanto, do ponto de vista do Direito das Obrigações, não é necessário haver pagamento em dinheiro para que um ato seja considerado oneroso.
O que caracteriza a onerosidade é a existência de obrigações recíprocas. No caso da integralização de capital:
- O sócio tem a obrigação de transferir o bem à empresa.
- A empresa, por sua vez, assume a obrigação de distribuir lucros ao sócio, caso haja resultados positivos.
Essa comutatividade gera, portanto, um vínculo contratual com obrigações de ambas as partes, tornando o ato juridicamente oneroso. Essa interpretação foi adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), revertendo posicionamentos anteriores que consideravam o ato como gratuito.
A Regra Geral: ITBI Incide, Mas Há Imunidade
Se a integralização de capital é considerada um ato oneroso, a regra geral seria a incidência do ITBI sobre a operação. Contudo, há uma exceção expressa na Constituição Federal, que estabelece imunidade tributária nesses casos.
O parágrafo 2º do artigo 156 da Constituição dispõe que o ITBI não incide sobre bens imóveis utilizados para integralizar capital social, criando uma cláusula constitucional de imunidade. Essa disposição reflete uma política de Estado: estimular que as pessoas transfiram seus bens para dentro de pessoas jurídicas, fazendo com que esses ativos passem a integrar estruturas que giram a economia, geram negócios e contribuem para o desenvolvimento.
E não são apenas as empresas que entram nesse cenário. Associações, fundações e cooperativas também são pessoas jurídicas capazes de movimentar a economia, reforçando o propósito nacional por trás da imunidade.
O Obstáculo do Ganho de Capital
No entanto, mesmo com a imunidade do ITBI, havia ainda um grande entrave à política estatal: o Imposto de Renda sobre o ganho de capital. Suponha-se que alguém tenha adquirido um imóvel por R$ 100 mil, e esse bem hoje vale R$ 500 mil. Ao transferi-lo para a empresa, surge um ganho de capital de R$ 400 mil, sobre o qual incidiria imposto de renda.
Isso tornava inviável ou indesejável a integralização do imóvel, justamente o oposto do que o Estado pretendia incentivar. O contribuinte, diante do custo fiscal, preferia não realizar a operação — e o plano do Estado esbarrava em um obstáculo legal.
A Solução Legal: Lei nº 9.249/95
A virada veio com a Lei nº 9.249, de 1995, que alterou a lógica da tributação do ganho de capital em integralizações. Até 1994, havia possibilidade de atualização monetária dos imóveis sem que isso gerasse ganho de capital tributável. Com a extinção dessa possibilidade, surgiu a necessidade de uma nova solução.
A resposta veio no artigo 23 da Lei 9.249/95, que oferece à pessoa física uma faculdade:
- Ou o imóvel é transferido à pessoa jurídica pelo valor de mercado, e o ganho de capital é apurado e tributado;
- Ou o imóvel é transferido pelo valor constante da declaração do imposto de renda, e nesse caso, não há ganho de capital nem imposto devido.
Essa medida atende à política de Estado de incentivo à movimentação patrimonial rumo às pessoas jurídicas, especialmente holdings familiares, sem penalizar o contribuinte com tributos excessivos no momento da reestruturação patrimonial.
Consolidação da Legislação: Decreto 9.580/2018 e a Continuidade da Política de Estado
A política de Estado que busca remover os entraves à integralização de bens na pessoa jurídica não é apenas uma diretriz conceitual — ela se concretiza em normas legais organizadas e acessíveis ao contribuinte. Para tanto, diante da imensa quantidade de leis sobre imposto de renda no Brasil, o governo federal decidiu consolidar esse emaranhado normativo em um único diploma.
Da mesma forma que o governo Getúlio Vargas consolidou as normas trabalhistas na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o governo brasileiro consolidou as normas de imposto de renda por meio de decretos reguladores.
Um exemplo dessa iniciativa é o Decreto nº 3.000, que esteve em vigor por muitos anos, desde a era FHC até o fim da era PT. Em 2018, no governo Temer, esse decreto foi atualizado e substituído pelo Decreto nº 9.580, que passou a ser o novo Regulamento do Imposto de Renda.
Este regulamento não trouxe inovações, mas sim organização. Ele sistematizou todas as leis sobre imposto de renda, tanto para pessoa física quanto jurídica, abrangendo regimes como lucro real, presumido e arbitrado. Essa compilação tem o objetivo de facilitar a vida tanto do contribuinte quanto da própria administração tributária.
Artigo 142 do Decreto 9.580: A Reafirmação da Escolha do Contribuinte
Dentro desse novo regulamento, encontra-se o Artigo 142, que reproduz fielmente o conteúdo do artigo 23 da Lei nº 9.249/1995. Ali, está estabelecido que a pessoa física possui a faculdade de transferir bens à pessoa jurídica por:
- Valor de mercado, com consequente apuração e tributação de eventual ganho de capital; ou
- Valor constante na declaração de bens e direitos do imposto de renda, sem a incidência de imposto sobre ganho de capital.
A “declaração de bens e direitos” é, na prática, uma seção da própria declaração de imposto de renda da pessoa física — onde cada bem é detalhado com o valor de aquisição. Assim, ao optar por transferir pelo valor declarado, o contribuinte não gera ganho de capital e, portanto, não é tributado.
Planejamento Tributário Inteligente e Estratégico
Em termos práticos, é claro que o caminho natural adotado por quem estrutura uma holding familiar é levar os bens para a pessoa jurídica pelo valor da declaração, justamente para evitar a incidência do Imposto de Renda sobre ganho de capital.
Além disso, dependendo da modalidade de holding escolhida, há também possibilidades de economia significativa com relação ao ITCMD (imposto sobre doações) — tema esse que, embora relevante, será abordado em uma outra ocasião com a profundidade necessária.
O ponto central aqui é compreender que todo esse arcabouço jurídico não é apenas um benefício ao contribuinte ou ao seu cliente, mas sim uma política nacional de incentivo à organização e dinamização econômica. O Brasil precisa e quer que os bens patrimoniais sejam alocados em estruturas jurídicas que gerem atividade econômica, segurança jurídica e planejamento sucessório
A Regra: Imunidade de ITBI na Integralização do Capital Social
Com base na Constituição Federal, na Lei nº 9.249/1995 e no Decreto nº 9.580/2018, o entendimento consolidado é claro: não incide ITBI na transferência de bens imóveis da pessoa física para a pessoa jurídica, quando se tratar de integralização de capital social.
Portanto, é perfeitamente possível — e desejável do ponto de vista legal e econômico — levar imóveis para dentro da sua célula cofre, sua holding familiar, sem qualquer incidência de ITBI.
Essa não é apenas uma brecha legal ou uma estratégia tributária. Trata-se de uma regra jurídica respaldada pelo texto constitucional e por uma política pública de interesse nacional.
Se você quer fazer a própria holding familiar ou atua com estruturação patrimonial, planejamento sucessório ou direito tributário, entender e aplicar corretamente essa regra é essencial para garantir segurança jurídica e eficiência fiscal. E mais: é uma contribuição estratégica para a economia do país.